A noite de domingo de uma mulher solitária

Alexia Cristhine
5 min readOct 19, 2020

Solidão é necessariamente algo ruim?

A casa está silenciosa, os gatos e o cachorro estão dormindo espalhados pelos cômodos vazios, ouço o barulho de um carro na rua e fico imaginando o que estão fazendo as pessoas lá fora, o relógio marca 2 da manhã e o sono ainda está longe de dar as caras por aqui, acho incrível que se eu estivesse em uma festa provavelmente já estaria louca para deitar em minha cama e ir ao encontro de meus sonhos, mas aqui, na minha casa, com a minha cama quentinha e aconchegante a poucos metros de mim, não sinto a mínima vontade de dormir.

A vida nos prega peças, como quando você precisa de um ônibus e de teimosia ele demora a passar, e no outro dia quando você não precisa dele passam vários da mesma linha, como se fosse uma pegadinha mesmo, como se o mundo tivesse tirado o dia para rir da sua cara. Hoje em dia eu consigo não me irritar com essas e outras, prefiro rir junto e tentar tirar proveito dessas situações.

Quando o ônibus atrasa é mais difícil ver o lado bom, mas já terminei vários livros que provavelmente estariam mofando na estante uma hora dessas. Agora, por exemplo, consigo tirar proveito por mais um tempinho da minha companhia, consigo mais tempo para organizar meus pensamentos, de relaxar e esquecer do mundo lá fora. Mesmo sabendo que amanhã acordo cedo, gosto de ignorar o relógio as vezes, de burlar as leis da física e realizar meu próprio tipo de viagem no tempo, volto algumas horas e penso que ainda estou no começo da noite, vou até a geladeira abro um vinho e pego um livro. A noite perfeita começa a se desenhar.

Passei anos e anos morando em uma casa lotada, os únicos momentos sozinha eram as madrugadas, acho que por isso durante o dia eu faço tanta coisa e sempre estou ouvindo alguma música, nunca lidei bem com o silêncio e nem com a solidão. Ao descrever os meus planos para uma noite perfeita e a minha família composta por três gatos e um cachorro, devo ter passado a impressão que sou o estereótipo perfeito de solitária convicta, isso não deixa de ser verdade, mas nem sempre foi assim.

Meu maior medo sempre foi acabar em uma noite de domingo em uma casa repleta de silêncios e vazio. Lutei muito contra a solidão, eu sempre busquei estar junto de alguém, porém nem sempre dei sorte de encontrar pessoas boas que quisessem estar junto de mim também. Quebrei muito a cara nessa minha incessante procura, e entendo que boa parte do meu pesar não foi culpa de ninguém além de mim. Eu busquei nos outros o que não encontrava em nenhum outro lugar, mas nunca entendi que o que eles me ofereciam era efêmero e apenas uma distração, eles não podiam estar colados para sempre em mim e quando partissem só deixariam a sensação de vazio ainda maior.

Por muito tempo meu único objetivo era não ficar sozinha e isso fez com que eu me machucasse demais, deixei de cuidar de mim, porque acreditei que só poderia prender alguém a minha vida se me dedicasse cem por cento para aquela pessoa. Hoje em dia é difícil imaginar o que se passava em minha cabeça, porque agora sei que é impossível prender alguém a você, que é inevitável ter que lidar com fins e também é impossível controlar o outro.

Minha ideia de carinho e amor deturpada me custou caro, após anos de terapia e depois de muitas feridas, consegui reconhecer os meus padrões e entender que a minha solidão só poderia ser curada enfrentando de cara a mesma. Então assim o fiz, me coloquei de cara com ela e quando a vi, não fugi, eu a abracei, entendi que estar sozinha não é demérito, estar sozinha me ajudou a começar a conhecer o que de fato era amor e cuidado.

No meio de minhas tantas noites de reflexões percebi que as vezes eu sentia falta de ter alguém para compartilhar meus pensamentos, e que estava tudo bem me sentir assim.

Comecei uma vida sozinha, depois adotei animais lindos que preencheram o silêncio da minha casa, passava muito tempo sem contato humano e para mim isso não era incômodo, mas comecei a perceber que estava me isolando cada vez mais, abracei a solidão com tanta força que mergulhei nela e não conseguia mais encontrar um modo de erguer a cabeça para respirar um pouco.

Recusava convites para sair, não via meus amigos e poucas vezes via minha família, deixei de lado quem nunca me deixou mesmo quando jurei que estava completamente só. Não foi um sentimento bom me dar conta disso, não foi um sentimento bom perceber que as mensagens haviam parado de chegar, que os convites aos poucos cessavam, que as pessoas desistiam depois de muito tentar, elas acabavam por entender que eu não queria nenhuma companhia e me deixavam, então, sozinha. Outrora errei por não deixar ir e agora errava por não saber amar quem merecia realmente a minha dedicação.

Demorei a achar o equilíbrio, a enfim enxergar que os dois caminhos me adoeciam, eu preciso de outras pessoas, todos nós precisamos, mas não preciso estar rodeada de gente o tempo inteiro, não preciso viver a vida do outro, viver em função do outro, não preciso ser apenas parte de um grupo sem sequer possuir um pouco de individualidade, mas também não preciso me isolar, não preciso deixar de amar e dar as costas para todos. Na verdade isso é impossível.

Nós vivemos em coletividade e só podemos nos curar quando estamos de alguma forma imersos nela, meus bichinhos são a família que eu construí, aqui em casa nunca estou sozinha, tenho amigos queridos que não vejo sempre, mas sei que me querem bem, uma família incrível que possui comigo laços de alma muito mais fortes que laços de sangue, pessoas que no dia a dia mesmo sem muita intimidade estão comigo nas tarefas corriqueiras e que fazem a rotina ser mais leve, eu não vivo sozinha, apesar de exalar solidão.

Falar de solidão por muito tempo foi sinônimo de algo triste, e realmente é triste quando ela é imposta, eu como mulher negra experimentei a solidão forçada, a rejeição marcada em minha pele, que me deixou marcas profundas, por muito tempo não me achei digna de amor, e essa solidão dói, ela de fato é ruim.

Mas hoje após lutar tanto para curar meus machucados, experimento a solidão por escolha, a solidão que é um afago e que não te faz sangrar. A solidão que te faz ficar mais tempo a sós contigo, e que aos poucos te deixa bem na própria pele, a solidão de achar que um domingo a noite é perfeito mesmo que não signifique sair e encontrar outras pessoas, a solidão que não te obriga a se partir em mil pedacinhos, para se doar para alguém que em troca talvez te dê um pouco de atenção, a solidão que te deixa inteira, que te faz querer encontrar pessoas inteiras que também curtam estar sozinhas bebendo um vinho e lendo um livro em um domingo a noite.

Encontrei uma solidão amiga, amena, que não me deixa angustiada e que não me deixa esgotada ao final do dia, sei que não preciso estar sozinha hoje, mas eu decido estar, e quando a solidão não é imposta e é apenas uma opção, ela não é de modo algum ruim. A solidão me ajudou a reencontrar o afeto e por incrível que pareça, quanto mais bem com fato de estar só eu fico, mais completa me sinto.

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Alexia Cristhine

Mulher, negra, LGBT // Escrevo sobre amor para aliviar a alma. Escrevo sobre a dor para tentar curá-la. Escrevo sobre a realidade para tentar mudá-la.