O peso da excelência
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Alguns dias atrás estava refletindo como viver implica cobrança, implica performance.
Lembro bem do final da minha infância, a pressão que sentia para ser uma criança que não dava “trabalho”, o quanto me esforçava para ser digna do amor daqueles que eu amava, o quanto eu me dedicava na escola para dar orgulho para eles.
Lembro também da pressão que desde cedo coloquei em mim para ser excelente em tudo que fazia, como sempre busquei a aprovação de professores e colegas, como ajudava a todos e sempre tirava as melhores notas, só para ter uma gota de reconhecimento.
Quando tenho essas lembranças a dor me invade, porque por mais que eu tentasse eu nunca era digna da admiração de ninguém, meus professores me acusavam de pescar nas provas, meus colegas me escolhiam para os grupos porque eu me saia bem nas apresentações de trabalho, mas eu continuava no canto da sala, sozinha no recreio.
Quando entrei na adolescência continuava tentando buscar a admiração de professores, colegas e familiares, continuava buscando afeto e reconhecimento, e continuava sem retorno.
Então imaginei que se eu continuasse sendo prestativa e dedicada aos estudos, teria finalmente o que tanto procurava, então continuei sendo o apoio dos meus colegas e da minha família, esperando que um dia alguém notasse o meu pedido de atenção, continuei estudando o máximo que podia, pois o vestibular estava batendo na porta e essa era a chance de finalmente provar que eu merecia ser amada e admirada.
Então passei no vestibular sem cursinho, sem ajuda financeira, passei várias vezes inclusive, e ainda assim não me notaram.
Quando entrei na universidade e vi pessoas das escolas mais caras da cidade estudando na mesma sala que eu, me assustei, o assunto que eles diziam ter visto no ensino médio eu desconhecia a existência, as viagens, os carros que eles tinham aos dezoito anos, o fato de não precisarem passar quase 5 horas dentro de um ônibus todos os dias para ir e voltar da aula, me assustava.
Eu estava muito atrás de todos eles, e tudo que eu pensava era que eu precisava estudar mais, me dedicar, para conseguir competir que igual para igual, e sim, eu encarava tudo como uma competição, ser mediana, não ser o primeiro lugar nunca foi uma opção, se já achavam que eu pescava mesmo tirando as maiores notas da turma, o que achariam de mim se tirasse notas ruins?
Eu não podia arriscar, não podia não ser a melhor em tudo que fazia, então continuei tentando, sozinha, ainda sem o apoio que tanto buscava, e continuei me sentindo medíocre, pequena, sentindo que nunca conseguiria chegar a lugar nenhum, aos dezoito anos meu pai já havia me dito isso, que ainda não havia conquistado nada, e eu tomei isso como uma sentença, acreditei de fato que esse era meu destino, o fracasso.
Quando fiquei adulta algumas coisas ficaram mais palpáveis, eu entendi o porquê de nunca ser reconhecida, dessa busca incessante e desse sentimento de falta de merecimento, eu era uma mulher negra, pobre, que aos dezoito anos se descobriu bissexual, eu era tudo que a sociedade tomava como errado, eu era a cara do fracasso, da miséria, da exclusão, essa era eu perante os olhos da sociedade, era isso que meus professores enxergavam quando me viam, era isso que me impedia de receber afeto das pessoas, era isso que me objetificava e me diminuía.
Não era eu, nunca fui eu, a culpa não era minha, mas então porque ainda hoje eu choro toda vez que uma oportunidade me é negada, então porque aos 22 eu continuo acreditando que fracassei, continuo me cobrando tanto ao ponto de não conseguir dormir imaginando o que vai ser de mim, porque as coisas são tão difíceis pra gente como eu? Porque o mundo é tão cruel conosco ? Porque eu preciso todos os dias ser a melhor em tudo que eu faço para tentar ter a chance de alcançar algum tipo de reconhecimento? Porque?
Ainda não tenho as respostas, mas sei que isso advém das certezas que aprendi desde cedo, a certeza que ser como eu sou é inadequado e que o meu lugar é justamente onde eu ainda acredito que estou, mergulhada em fracasso e sofrimento, eu tenho plena consciência que isso é efeito dos preconceitos que sofro, das privações que a falta de privilégios acarretaram, mas ainda sinto dentro de mim que fracassei.
Todos dias eu acordo e tento lembrar de tudo que já conquistei, tento lembrar dos motivos que me fazem ainda não desistir, é pelas que eu amo, é pelas pessoas que assim como se acham inadequadas, é pela minha gente que todo dia eu levanto e continuo lutando, e é por eles que vou tentar todos os dias também lutar contra esse sentimento, é por eles que vou lutar para que crianças como a gente não passem por situações parecidas, é por eles que vou tentar me lembrar de ser gentil comigo e de sempre, absolutamente sempre, não aceitar menos do que mereço, de sempre lembrar que eu sou digna pra caralho de amor e admiração!